Entrevista: como abordar a obesidade sem cair na gordofobia
Quando se formou em Nutrição, em 2008, Erick Cuzziol, de 39 anos, enfrentou dificuldades para iniciar a sua carreira. “Era comum, numa entrevista de emprego, perguntarem como eu ia explicar para as pessoas que eu era um nutricionista e era gordo”.
Erick, que já tinha um quadro de compulsão alimentar descoberto durante a faculdade, demorou a encontrar colocação no mercado e desenvolveu depressão.
O cenário mudou quando resolveu assumir como nome o que, até então, era usado como ofensa: nas redes sociais, tornou-se o “nutricionista gordo”. A partir daí, ganhou não apenas seguidores, mas espaço na internet e na mídia para mostrar seu trabalho e abordar temas como saúde, nutrição e gordofobia.
A Redação CDD conversou com Erick sobre esses temas e sobre sua trajetória na área da nutrição. Ele reforça que a obesidade está associada a questões de saúde, mas aponta que a abordagem de muitos profissionais de saúde e da sociedade como um todo não têm ajudado.
Você usa o @nutricionistagordo nas redes sociais. Quando e por que tomou a decisão de adotar esse nome na internet?
Na época da faculdade, descobri que tenho compulsão alimentar. Fui fazer terapia, e ali tive a chance de me conhecer.
Quando me formei, tinha dificuldade de arrumar emprego. Foi ficando claro que eu só era contratado para vagas em que não tinha outra opção. Me formei em 2008 e naquela época o preconceito não era tão visto. Era comum, numa entrevista de emprego, perguntarem como eu ia explicar para as pessoas que eu era um nutricionista e era gordo.
Nunca tive oportunidade de ver meu desempenho sendo avaliado, porque as entrevistas eram sempre sobre minha aparência. E, na internet, estava o tempo inteiro vendo piadas. Quais são as formas de insultos que as pessoas usam? O dentista com dente podre, o médico que fuma e o nutricionista gordo.
Um dia, na internet, vi um pesquisador que eu seguia e admirava compartilhando um estudo ruim que dizia que metabolismo lento não existe, e falando: “Para os obesos não ficarem usando desculpas”. E aí veio uma série de críticas de colegas dizendo que o estudo estava cheio de erros, e que a forma com que ele falou aquilo era agressiva.
Quando li o texto, fiquei pensando: eu não devo desculpas para ele, eu não devo desculpas pra ninguém. Eu devo desculpas para mim, porque me maltratei muito, cheguei ao ponto de tentar tirar minha própria vida. E falei: “Quer saber?” Eu vou ser esse nutricionista errado. Já estou sem trabalho, passando por tudo de ruim mesmo”. Em 2017, mudei o nome do meu perfil para “nutricionista gordo”. Depois comecei a ganhar seguidores e a ganhar muitos colegas que de certa forma sofrem com a pressão estética.
Eu estava conversando com uma menina numa postagem da BBC e um jornalista que estava acompanhando achou interessante meu nome. Ele contou minha história e viralizou. Veja só, 100 mil pessoas acessaram meu perfil, 5 mil começaram a seguir e aí eu comecei minha trajetória. Caí num lugar de ativismo para o qual eu não me considerava preparado, e ainda às vezes não me considero. Mas eu tinha muito para representar e, ou eu fazia isso, ou desistia de tudo de novo.
Uma coisa comum na obesidade é que é colocado para gente que não temos capacidade. Se você não consegue se esforçar, é porque você não quer. Ou seja, você nunca é capaz. Hoje, sou membro e consultor da Abeso [Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica] para a gente começar uma luta por políticas públicas. Fiz uma pós-graduação em comportamento alimentar, tenho dado palestras em faculdades.
Essa transformação traz um cenário de possibilidades de trabalhar, mas é importante deixar claro: ainda assim, muito pouca coisa é remunerada. Se eu dependesse das coisas sociais que as pessoas veem, não conseguiria me sustentar. Mas consegui pacientes, pacientes que indicam outros, e assim fui criando minha rede de sustento.
Hoje, a obesidade é considerada uma doença crônica. O que você acha sobre isso?
Eu não acho que a abordagem da doença é a melhor forma. Na obesidade, é preciso entender o seguinte: depois que a pessoa ganha peso, ela vira um corpo que se relaciona de forma diferente, e a gente precisa conversar cada vez mais sobre isso. Porque parece que simplificaram demais com o discurso de doença, como se não houvesse segredo: “é só emagrecer”.
Mas o emagrecimento é extremamente complexo. Abordar as pessoas como corpos que merecem uma atenção diferenciada e especial é um caminho não só para conscientizar sobre tratamento – se for necessário – como também para que a sociedade entenda que é uma questão complexa. Porque a sociedade acredita naquilo que é mais confortável: que essa pessoa não quis parar de comer, não quis se esforçar. Isso não pode mais ser visto assim. Só falar de emagrecimento como se fosse uma cura leva as pessoas a compreender errado.
Nesse sentido, se a gente considera obesidade como uma doença crônica, ela sempre precisa de “tratamento”?
Não tem como dizer. Até aqui, as únicas abordagens que as pessoas conheceram – por falhas de diversas questões, de diretrizes, de pesquisas – são essas que erroneamente fazem inclusive os profissionais acreditarem que a pessoa só estará bem se atingir o tal do peso ideal.
O que é estranho, porque lá em 2008, aprendi na faculdade sobre peso ajustado, ou peso possível. E hoje em dia começa um discurso de melhor peso. E o que é o melhor peso? É quando você reduz e atinge um peso que é bom pra você, do ponto de vista de saúde. Hoje a gente percebe que essas pessoas precisam urgentemente de algo que consigam sentir que estão bem, que estão dentro de um controle, que estão dentro de uma situação segura.
Isso é muito difícil? Depende. Isso é muito difícil se a gente achar que a responsabilidade é única e exclusivamente da pessoa. Mas, se começar a colocar a sociedade a entender que a obesidade é uma luta conjunta, contra o que nos faz mal, não precisa ser. A gente precisa começar a falar que, na obesidade, precisa de qualidade: de vida, de alimentação, de acessos.
A pessoa vai precisar de tratamento para o resto da vida? Depende muito. A gente só vai conseguir ter melhores respostas para isso no dia que as pessoas com obesidade tiverem acesso a equipes multidisciplinares e tratamentos eficazes. Por que, hoje em dia, quanto você paga numa medicação, numa cirurgia ou num convênio? Como as pessoas não estão tendo condições de bancar o tratamento, e a responsabilidade dos custos fica só pra elas, a gente vai falar que elas precisam de tratamento para o resto da vida, e aí elas não vão fazer porque acham tudo muito distante.
Podemos entender assim: as pessoas precisam de um tratamento, e ele não é um tratamento simples. Mas elas precisam sentir também que estão tendo uma vida de qualidade.
Como a gordofobia no meio médico afeta a saúde dos pacientes?
Afeta muito. E é assustador porque tem pessoas que leem estudos sobre gordofobia e elas acham que mudar o tom de voz resolve, que postar algumas fotos de pessoas gordas bem vestidas resolve. E não resolve.
Outra coisa: todo mundo de novo querendo ser salvador. Desde 1800, vem gente nos salvando da obesidade. E o que a gente não tem é quem ouça quando falamos que não estamos suportando, não estamos conseguindo. A primeira coisa que eu gostaria de ver e que me faria sentir que estão surgindo mudanças são pessoas gordas sendo ouvidas. Por mais difícil que seja, o médico está ali para ouvir, orientar e esclarecer, mas não para tomar a fala. Vejo que o local de fala não é respeitado, que muitas vezes tenta-se construir novos limites perigosos.
O que nós precisamos fazer é receber a obesidade e as pessoas que com ela vivem de mente aberta, para entender os reais desafios, e entender como a gente pode auxiliar. A falta de amparo é a maior denúncia quando se fala em gordofobia.
Um ponto importante é: não posso esquecer que ajudo quem me paga. Nosso maior problema é ter que emagrecer ou é ter a condição para fazer o que nos faz emagrecer? Então vão continuar mantendo o mesmo discurso perigoso, porque hoje um dos nossos maiores problemas é informação errada sobre obesidade. Tem influencers que nem são da área da saúde, mas que emagreceram e se tornaram o modelo, e todos vão fazer o que ela fez. Aí a gente percebe o quão difícil é para área da saúde reconstruir a visão de acolher, amparar e se aliar ao paciente.
Como aliar o cuidado com a saúde e o respeito com o corpo?
A primeira coisa que vamos ter que entender é o que é, realmente, obesidade. Se achar que é uma falha de comportamento, vamos achar que é só parar de falhar e está resolvido. Também é preciso entender os desafios da pessoa, da sociedade e do metabolismo. Se chego num profissional e tenho dor no joelho, por que falam que é só emagrecer? Bom, para emagrecer eu preciso fazer atividade física, e como faço atividade física com dor? Falta uma lógica do que é possível. Se a pessoa tem que comer melhor e não tem emprego, ela não vai comer melhor.
Tem várias questões que a pessoa é repelida ao buscar tratamento por falta de escuta. “É melhor você desistir” – sem perceber, profissionais agem assim. Como se, já que você não se esforça, não tem o que fazer.
Mas tem o que fazer. Muitas vezes, o que alguém acredita ser questão de esforço só se torna possível através de medicação, de cirurgia ou do convívio com um profissional treinado. O paciente procura você justamente porque não consegue superar os desafios dele. E qual a resposta que se dá? Que tem que se esforçar. Ali acabou, eu mostro para o paciente que não tem o que fazer.
A gente precisa começar a enxergar o que é possível trtar e onde é possível chegar. Depois de emagrecer, às vezes se recupera o peso, há tanta coisa que a gente precisa fazer para manter o emagrecimento, e nossa sociedade não fala sobre manutenção, só sobre emagrecimento.
Hoje, a gente está enxergando emagrecimento como uma fase preparatória, porque o tratamento é a manutenção.
Você fez parte da rede “Saúde sem Gordofobia”, que trata desse preconceito no setor da saúde. Como combater a gordofobia nesse meio?
Assim que os profissionais começarem a se ver como aliados, eles vão perceber que não basta uma publicação explicando o que é gordofobia, dizendo que falar que a pessoa é bonita de rosto é gordofobia. Isso é raso.
Quando você critica que alimentos frescos e naturais estão caros, você está combatendo a gordofobia. Se você fala que a falta de emprego vai arruinar a saúde das pessoas, você está lutando a favor de muitos pacientes. Quando as pessoas entenderem que não precisa falar de gordofobia para lutar contra ela, vão entender o que é se aliar, o que é proteger esses pacientes e começar a levar para a sociedade alguns alertas. Se está difícil comprar alimentos frescos e naturais, já insira o paciente, comece a gerar o alerta, mas dê uma olhada em quais alimentos são da safra, quais estão mais baratos.
E assim: leve esses pacientes a perceber que é difícil, mas tem saídas.
Temos ainda uma indústria do emagrecimento forte. Como essa cultura de dietas influencia a saúde da população?
Dieta é alimentação. O termo dieta significa tudo que você come. Se você estiver comendo um fast food, um ultraprocessado, é a sua dieta. Aliás, a gente só usa o termo “dieta” hoje em dia, porque foi uma construção da nutricionista Sônia Tucunduva, como tentativa de explicar que dieta era uma alimentação, não era uma restrição, que era o antigo “regime”.
Não adianta desconstruir e defender a restrição. Restrições vêm de estudos que mostram itens que podem ser alterados, geralmente para uma redução, e que isso desempenha um bom papel na saúde. Mas em momento algum se focou em orientar os profissionais a se atentar à tolerância do paciente àquela restrição, e que era muito importante ajustar isso de forma eficiente para a manutenção do paciente na estratégia.
Quando você vai ver, a pesquisa que embasa uma dieta qualquer foi feita com pessoas que estavam num hospital, que comeram o que entregaram na mão delas, e tinha atividade física, tinha médico. Num mundo completamente distante da realidade da maioria dos pacientes, ela funciona. Isso tem que começar a ser questionado.
Por que as dietas só funcionam nas pesquisas? Porque na realidade o que vai funcionar são ajustes possíveis, e que possam ser mantidos. Se você consegue comer menos pão, ok, tira o pão. Agora, se você gosta do pão e quer,porque de manhã é o seu prazer, o nutricionista tem, sim, uma forma de calcular que esse pão fique no seu cardápio. Mas, de novo, vem o modismo e faz até o profissional se perder no radicalismo e fazer com que o paciente se sinta constantemente fracassando. A gente precisa que a nutrição se entenda como um ajuste que o profissional faz na vida, na dieta da pessoa.
Como essas pessoas podem lidar com o emagrecimento sem cair em radicalismos?
Quando você descobre a obesidade? Quando o peso aumentou e você está com o corpo maior. O que a gente precisa entender é: muita coisa aconteceu ali. Não é só agora você está gordo que você tem obesidade, não. A obesidade começou talvez lá atrás e o resultado foi esse peso que está constantemente aumentando.
Primeiro ponto: a preocupação tem que ser se o de entender que, se o peso continuar aumentando, muitos outros problemas vão surgindo junto. Segundo ponto: não aumentar já é um primeiro passo.
Diminuir é a preparação. Por quê? Quando emagreço, consigo me afastar de outros problemas que podem surgir. E aí agora começa o processo de manutenção. O emagrecimento é o ponto de partida, o restante é o tratamento. Até aqui, a todo instante, o que vão falando sem parar é que você tem que emagrecer, fazer dieta, fazer tal dieta. Não. Isso é a preparação. O tratamento é a consciência que os pacientes vão adquirindo. Por isso leva tempo, não existem mensagens prontas, os desafios são encontrados e vamos aprendendo como desenvolver estratégias para esses desafios, e essas estratégias viram hábitos.
Você defende uma lei contra a gordofobia? O que ela seria?
Na verdade o que tenho aprendido é que a gente precisa de mais de uma lei, precisa de um estatuto. Precisamos de uma definição clara das vulnerabilidades de uma pessoa com obesidade e que o governo, as áreas, setores, indústrias, a sociedade respeitem isso. Porque a situação está se agravando, os números estão aumentando e vai chegar no ponto de ser tarde demais para fazer algo.
A gente precisa urgentemente que essas pessoas tenham um amparo. Se eu falo que a pessoa tem que se esforçar, mas não quero ela no meu serviço, no meu plano de saúde, na minha academia, que esforço é esse? Que esforço é esse que ela tem que fazer? Ter uma lei é começar a colocar a sociedade para entender que eles estão oprimindo, repelindo, expulsando essas pessoas, e não tratando.
E a sociedade, entendendo isso, vai ter que cobrar academia, indústria, empresa aérea… Ou seja, quem está causando um problema na poltrona do avião, quem não quer parar de produzir ultraprocessado hiper palatável e por aí vai.