20.01.2023 Obesidade

Gordofobia: discriminação começa na falta de equipamentos para atender pessoas gordas

No início de janeiro, o episódio dramático de um jovem de 25 anos que morreu na porta de um hospital em São Paulo sem ser atendido ganhou as manchetes. Vitor Augusto Marcos de Oliveira teve insuficiência respiratória e passou 32 horas esperando atendimento, negado sob a justificativa da falta de macas adequadas para ele. Ele pesava 190 quilos.

A falta de equipamentos para atender pessoas gordas pode ser considerada gordofobia, uma forma de discriminação. “Toda vez que uma pessoa gorda perde o direito básico à saúde, a usar o transporte público, a sentar em uma cadeira confortável na sala de espera – tudo isso mostra que existe um estigma. Essas pessoas são desumanizadas”, explica a filósofa Malu Jimenez, doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e uma das precursoras na pesquisa e no ativismo anti-gordofobia no Brasil. 

Um dos pioneiros em cirurgia bariátrica no Brasil, o médico Luiz Vicente Berti, vice-presidente executivo da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), conhece as dificuldades enfrentadas cotidianamente por pessoas gordas que buscam atendimento – em busca da operação ou não. Há cerca de 35 anos, quando começou a realizar as cirurgias, logo viu que não bastava se preparar enquanto profissional. “Precisava muito mais. A começar pelos instrumentos”, relata. A maioria dos respiradores, por exemplo, consegue realizar a força do pulmão de pessoas que não possuem obesidade. “O mundo é feito para adultos de até 1,80m e 100 quilos”, resume Berti.

Também faltam batas para as pessoas gordas que passam por cirurgias e manguitos – aquela faixa que faz parte do instrumento que mede a pressão, e que o profissional passa ao redor do braço. “Isso é muito violento”, lamenta Jimenez. 

De acordo com a última Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE com dados de 2020, 60,3% dos adultos apresentam excesso de peso – o que representa 96 milhões de brasileiros. Entre eles, muitos ainda se adequam aos instrumentos disponíveis, porém parte significativa sofre com a falta de estrutura. 

Atendimento especial

Em 2018, a SBCBM criou um programa que certifica profissionais e hospitais para elevar a qualidade do atendimento a pacientes gordos, não só na hora da cirurgia bariátrica, mas em qualquer serviço de saúde. São quase 500 itens no checklist para os hospitais, que vão do tipo de vaso sanitário à sonda para respiração, que precisa ser de um tamanho maior. “Em hospitais com essa acreditação, os índices de complicações são infinitamente menores”, pontua o médico. 

No entanto, apenas nove hospitais brasileiros já estão acreditados pela SBCBM, e outros 80 encontram-se em processo de certificação. O programa foi oferecido pela entidade ao Ministério da Saúde no final de 2022. A proposta era avaliar hospitais no Brasil inteiro, sem custo – por enquanto, isso não avançou.

Diante da morte de Vitor, o Ministério Público de São Paulo quer investigar a quantidade de macas especiais disponíveis nos hospitais públicos do estado e saber qual é o procedimento padrão no atendimento às pessoas gordas. “Não é só a maca”, pontua Maria Edna de Melo, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Regional São Paulo (SBEM-SP). 

Segundo a médica, o atendimento diferenciado deveria começar no setor de referenciamento, que encaminha o paciente ao hospital. Pacientes gordos precisam ir direto para locais com capacidade para recebê-los – hoje em dia, normalmente são os hospitais de alta complexidade.

Vitor foi inserido no sistema da prefeitura para localizar um hospital que o atendesse. A unidade mais próxima de onde estava era o Hospital Geral de Taipas, que estava superlotado. Diante da negativa, outros centros foram consultados, até que o Hospital Vila Nova Cachoeirinha informou que haveria uma vaga para o paciente.

Chegando lá, no entanto, a equipe alegou que Vitor não poderia ser atendido devido à complexidade do caso dele. “Esses pacientes apresentam um grau de dificuldade maior no atendimento. É mais difícil fazer exames complementares para fechar diagnóstico, realizar intervenções por acesso venoso e até executar uma reanimação numa parada cardiorrespiratória”, explica Melo. A Secretaria da Saúde abriu uma sindicância para apurar por que o hospital informou que havia vaga enquanto não dispunha de equipamentos necessários para atender Vitor.

O jovem acabou sendo novamente encaminhado para o Hospital Geral de Taipas, onde aguardou por quatro horas dentro da ambulância e morreu antes de conseguir uma vaga na unidade. “Meu filho foi negligenciado”, disse Andreia Marcos da Silva, mãe de Vitor, em entrevista ao G1.

Gordofobia médica

Os empecilhos para pessoas gordas vão além de macas e roupas cirúrgicas inadequadas. Uma pesquisa conduzida pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) em conjunto com a SBEM ouviu 3 621 participantes, dos quais 85,3% relataram ter sofrido algum tipo de constrangimento por causa do peso. O dado mais alarmante é que 60,4% dos casos de gordofobia acontecem em consulta médica.

Segundo Jimenez, o estigma existe na própria formação dos profissionais de saúde. “Toda vez que uma pessoa gorda entra num consultório, antes mesmo dos exames, já é feito o diagnóstico do que está gerando a queixa reportada”, afirma a pesquisadora. 

“Além da estigmatização, os profissionais acabam negligenciando o atendimento”, aponta Melo. Alguns médicos deixam de fazer uma orientação adequada por acharem que o paciente, por ser gordo, não vai seguir à risca. Com a perda de peso apontada como a única solução para os problemas do paciente, também é comum que exames complementares sejam deixados de lado. “Estudos mostram que o rastreio do câncer é realizado com menor frequência nesses pacientes. E são pessoas com risco aumentado para determinados tumores”, afirma a médica.

Uma pesquisa de 2019, realizada no Canadá, avaliou a gordofobia entre médicos da família no país. Entre os profissionais ouvidos, 18% afirmaram se sentir enojados ao atender pacientes gordos, e 33,3% indicaram se sentir frustrados com pacientes com obesidade. 

Outro estudo, publicado pela Academia de Nutrição e Dietética dos Estados Unidos, revela que metade dos profissionais da saúde atribui o sobrepeso e a obesidade à falta de força de vontade. Isso reforça estereótipos negativos e, ao invés de incentivar hábitos saudáveis, faz com que pessoas gordas deixem de procurar atendimento médico.

A gordofobia também impacta na saúde mental, gerando ansiedade e casos de depressão em pessoas gordas. “Isso perpetua e agrava a obesidade, já que a ingestão calórica tende a aumentar em situações de estresse”, explica Melo.

De acordo com Jimenez, é urgente que o debate sobre a gordofobia faça parte da formação de médicos e outros profissionais da saúde. “Para que essas violências parem de se repetir, é importante entender que as pessoas gordas precisam ter os seus direitos garantidos e que não são culpadas por serem gordas”, resume.

Para a médica Maria Edna de Melo, só educação não basta. “É preciso uma legislação que puna a gordofobia não só no consultório, mas em qualquer ambiente. As pessoas devem ser encorajadas a denunciar esses casos”, afirma. Um estudo de 2022 relata que o volume de processos envolvendo gordofobia vem aumentando no Brasil, principalmente por injúria e danos morais. 

Desde 2009, 756 processos envolvendo gordofobia passaram na Justiça em todo o país. Destes casos, 108 tramitaram em 2022 – contando apenas até outubro, último mês com dados contabilizados pela pesquisa.

Peso e saúde

“A gordofobia é difícil de detectar, porque vem sempre disfarçada de cuidado, de amor, de saúde”, afirma Jimenez. O preconceito que estigmatiza pessoas gordas parte, muitas vezes, da crença de que o sobrepeso é o único marcador de saúde. A filósofa participa de uma corrente de estudos que critica o uso do índice de massa corporal (IMC) como marcador único de corpo saudável. 

A Abeso e a SBEM propuseram, em abril de 2022, uma nova maneira de classificar a obesidade, que serve como ferramenta complementar ao IMC. Baseado na trajetória do indivíduo, o cálculo proposto parte do peso máximo que uma pessoa alcançou na vida — sem considerar o período de gravidez e outras situações especiais. Depois, anota-se quanto de peso o indivíduo já perdeu, sendo a partir daí calculado o percentual que essa perda representa do valor mais alto. 

De acordo com a Abeso, uma perda modesta, representada por uma porcentagem acima de 5%, já traz vantagens para a saúde, independentemente do valor do IMC final. A ideia é evitar metas muitas distantes e basear-se em si próprio, com o intuito de criar um caminho sustentável. “A gente não sabe da vida das pessoas”, pondera Melo. “O paciente pode estar hoje com 120 quilos, mas, se já chegou a pesar 160, então está muito melhor”, analisa.

Um estudo de pesquisadores alemães, publicado em 2021 no periódico da Associação Médica Americana, analisou dados de 386 mil indivíduos. A partir daí, ele propõe uma definição de “obesidade metabolicamente saudável”. Não há consenso sobre essa abordagem: ela parte do princípio de que há indivíduos que, mesmo com índices condizentes com a obesidade, não apresentam alterações em exames que indicariam ameaças à saúde (como glicemia ou triglicérides elevados). 

Melo, no entanto, ressalta a importância de não “romantizar” a obesidade: o alto peso representa um fator de risco para problemas como hipertensão e doenças cardiovasculares no futuro, mesmo que eles ainda não estejam se manifestando no presente. 

De qualquer forma, o conceito de “obesidade metabolicamente saudável” ao menos ajuda a perceber como os riscos variam entre grupos de pessoas com sobrepeso.

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