Medicamento promete melhoras cognitivas para pacientes com Alzheimer; especialistas pedem cautela
As farmacêuticas Eisai e Biogen divulgaram, na última semana de setembro, os resultados preliminares do estudo da fase 3 do seu novo medicamento para tratamento do Alzheimer, o lecanemabe. Se os dados disponíveis até o momento se confirmarem, esse seria o primeiro remédio a apresentar “benefícios cognitivos” para pacientes com Alzheimer em uma pesquisa robusta, segundo a Nature. Especialistas, porém, recomendam encarar a novidade com cautela.
A neurologista Ingrid Faber, do Hospital Sírio-Libanês em Brasília, explica que “o diferencial do lecanemabe, pelo que foi informado, é sua capacidade de tornar a progressão do Alzheimer mais lenta em pessoas que já possuem a doença, o que não foi demonstrado em outros medicamentos”.
Atualmente, não há fármacos em uso que retardem essa demência. Os tratamentos se concentram na contenção dos sintomas.
O lecanemabe é um anticorpo monoclonal – um molécula biológica, fabricada com células vivas – que atua sobre os acumulados de proteínas beta-amiloide no cérebro. “A ideia do medicamento, assim como de outros que já foram desenvolvidos, é tentar reduzir a deposição das proteínas anormais”, explica Faber. “A proteína beta-amiloide pode existir na forma normal ou na alterada, que se deposita e prejudicaria a função dos neurônios”, completa.
Esta é a chamada hipótese das beta-amiloides: a ideia de que seriam essas proteínas as causadoras do Alzheimer – ou, ao menos, integrantes importantes nesse processo. Os fabricantes do lecanemabe afirmam que os estudos clínicos reforçariam essa hipótese, porém cientistas pedem cautela.
“O acúmulo da proteína beta-amiloide parece ser um dos fatores que causa o Alzheimer, mas não o único. Ainda existem questões incompreendidas, por isso não sabemos se o tratamento vai se resumir ao uso de opções que atuem nessa via”, resume Faber.
Uma polêmica com seu medicamento “antecessor”
Os testes clínicos com o lecanemabe foram realizados durante 18 meses em voluntários com Alzheimer leve. Os resultados divulgados até o momento mostraram não só uma diminuição do acúmulo das proteínas beta-amiloides no cérebro como uma melhora na chamada escala CDR-SB, que avalia o desempenho de performance cognitiva e funcional.
“Mas essas são informações preliminares. Ainda não dá para julgar se os resultados realmente serão confiáveis”, alerta Faber. De acordo com as fabricantes, houve uma diminuição de 27% no declínio cognitivo dos pacientes no período de um ano e meio. Isso em comparação com aqueles que não utilizaram a medicação. “Se esses dados se confirmarem, será muito animador,”, admite a neurologista.
O mecanismo de ação do remédio não é novo. Em junho de 2021, agência reguladora de saúde nos Estados Unidos, a FDA, aprovou o aducanumabe, da companhia Biogen, uma das fabricantes do lecanemabe. Essa molécula também combate o acúmulo das proteínas beta-amiloides no cérebro.
Contudo, a aprovação do aducanumabe – a primeira droga a tratar uma suposta causa do Alzheimer – enfrentou críticas de médicos e cientistas. Segundo eles, os dados apresentados pela empresa não comprovaram um benefício efetivo do remédio para a cognição dos pacientes, principalmente porque foram ancorados em um subgrupo da pesquisa.
Explica-se: em um primeiro momento, o aducanumabe não trouxe resultados favoráveis para a cognição em dois estudos de fase 3, que inclusive foram suspensos. Mas, após analisar os dados em detalhes, a farmacêutica notou que um subgrupo de participantes que recebeu doses mais altas em uma fase precoce da doença teriam apresentado melhoras. Segundo alguns especialistas, esse tipo de análise é importante para levantar hipóteses, mas seria insuficiente para uma aprovação. O ideal seria conduzir um novo trabalho focando nesse perfil de paciente.
Além disso, os efeitos adversos do aducanumabe despertaram preocupação: nos dois estudos mencionados, 40% dos participantes que receberam a dose mais alta tiveram inchaço cerebral.
O processo de aprovação do aducanumabe tem sido investigado nos Estados Unidos. Já no Brasil, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia declarou que considera sua liberação na América do Norte “um marco na ciência e servirá de impulso para a continuidade das pesquisas e de um caminho para novas possibilidades”. Entretanto, pede cautela extrema para análise dos ensaios clínicos. De acordo com a entidade, a relevância dos achados é “questionável”.
Diante de tamanha controvérsia com seu antecessor, o lecanemabe tem sido avaliado com uma dose adicional de cuidado. “Ainda não está claro, por exemplo, se o lecanemabe pode ter também aqueles efeitos colaterais”. Segundo os dados divulgados até aqui, houve anormalidades nos exames de neuroimagem dos participantes, mas em menor nível: cerca de 21% tiveram sangramento ou inchaço no cérebro, sendo que em torno de 3% manifestaram sintomas relacionados a essas alterações propriamente.
O lecanemabe está passando pelo mesmo processo de avaliação na FDA que o aducanumabe passou. As farmacêuticas solicitaram um tipo de aprovação “acelerada”, com base nos resultados de pesquisa de fase 2. Ou seja, sem considerar esses dados mais recentes.
Esse caminho pode ser utilizado para drogas com benefícios ainda incertos, desde que se destinem a doenças sérias com poucos tratamentos disponíveis e apresentem um mecanismo de ação razoável, que indique benefícios aos pacientes.
Possível melhora, mas sem cura à vista
“O lecanemabe não é um medicamento que vai curar a doença, até porque o acúmulo de proteína beta-amiloide não é a única coisa de anormal que acontece no cérebro de quem tem Alzheimer”, adiciona Faber.
Já existem medicamentos em testes que buscam avançar por caminho semelhante no combate ao declínio cognitivo causado pelo Alzheimer. A farmacêutica Roche vai lançar, ainda em 2022, resultados do seu próprio anticorpo para combater a proteína beta-amiloide, e a empresa americana Eli Lilly também planeja lançar um fármaco com essa propriedade.
O ensaio clínico completo do lecanemabe está previsto para ser publicado em novembro, e a agência reguladora americana deve anunciar sua decisão quanto à aprovação do medicamento em 6 de janeiro de 2023. Não há estimativa de chegada ao Brasil.
De acordo com a organização Alzheimer’s Disease International, serão cerca de 74,7 milhões de pacientes ao redor do mundo em 2030, ante 55 milhões hoje. No Brasil, estima-se que 1,2 milhão de pessoas vivem com a doença.