Quais são as causas da judicialização de saúde no Brasil
Fala de ministro da Saúde ataca busca de direitos dos pacientes na Justiça e causa preocupação. Especialistas apontam como a questão deve ser enfrentada
Por Mauricio Brum (Redação AME/CDD)
Uma fala recente do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, causou preocupação em pacientes que vêm pleiteando o acesso a tratamentos e medicamentos pela via judicial. No último dia 13 de junho, através das redes sociais, ele defendeu que a judicialização “inverte prioridades”, “destrói” o sistema de saúde e “não deve ser estimulada”, referindo-se aos gastos crescentes da União em função das ações. De acordo com o ministro, um salto de R$ 200 milhões para R$ 2 bilhões nos últimos dez anos.
O crescimento de demandas nas cortes é real. Um levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgado em 2021 mostra que os casos de saúde que chegam aos Tribunais de Justiça dos estados cresceram mais de 50% apenas entre 2015 e 2020, aproximando-se de meio milhão no ano mais recente. Ainda assim, para juristas e especialistas na área, o posicionamento de Queiroga é problemático ao desconsiderar a complexidade do tema.
“A declaração do ministro é uma infelicidade total. Ele fala como se a judicialização fosse a causa do problema, e não é”, diz o advogado sanitarista Tiago Farina Matos, consultor em advocacy na área de saúde.
Para Matos, Queiroga utiliza casos excepcionais em que se busca acesso a tratamentos sem eficácia comprovada para atacar demandas legítimas. Mas a realidade é que, embora não haja dados exatos sobre esse recorte, grande parte das ações se refere à busca por tratamentos já incorporados e com eficácia comprovada. Ou seja, eles passaram por análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e ganharam aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não foram disponibilizados no prazo de 180 dias previsto em lei.
Demora para acessar direitos já garantidos
“O problema não é a demora da incorporação em si, mas, depois que isso ocorre, há diferentes etapas para chegar à população”, afirma o advogado sanitarista Paulo Benevento, consultor jurídico das ONGs AME e CDD. “Há atrasos de 300, 400, até mil dias. Essa judicialização não só é justificada como é necessária. É um direito do cidadão ter acesso ao medicamento que foi incorporado ao sistema”, atesta. “É claro que existem casos de abuso, mas dizer que isso é a regra está errado”, reforça.
Ou seja, a judicialização deveria ser tratada como sintoma da lentidão na disponibilização dos novos tratamentos.
São várias as razões que podem levar à demora de acesso a algo que já foi incorporado pelas agências regulatórias: atrasos na licitação, problemas na destinação de recursos ou, mesmo, desencontros logísticos.
“Não há um consenso entre os pesquisadores sobre o ‘jeito certo’ para reduzir a judicialização, porque isso envolve várias medidas, que muitas vezes devem ser conduzidas simultaneamente”, argumenta a professora de gestão em saúde Beatriz Cristina de Freitas, que analisou a judicialização no estado de São Paulo em sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior de São Paulo. “Devemos pensar em medidas administrativas, de gestão, de financiamento, do gerenciamento do cuidado, de autocuidado, de promoção e prevenção da saúde, entre outros”, exemplifica.
Segundo ela, cada canto do país tem particularidades que levam pacientes a recorrer à Justiça, influenciadas por aspectos que vão desde a gestão pública local até o perfil epidemiológico da região.
“Devido à complexidade desse processo e suas consequências na organização dos sistemas de saúde, fica claro que preveni-lo seria o melhor caminho. Isso significa garantir aos cidadãos o seu direito constitucional à saúde”, defende Freitas. “Para isso ocorrer, é fundamental conhecer e aprofundar-se nas razões que levam os indivíduos a acessarem a Justiça. Onde estão e quais são as necessidades não atendidas? O que de fato gera a judicialização?”, questiona.
De acordo com ela, uma dificuldade para contornar esse problema está na ausência de informações precisas e até na falta de diálogo entre pesquisadores, gestores e o Judiciário.
Nesse contexto tão complexo, a fala do ministro vai contra a própria resolução da judicializado, segundo Tiago Farina Matos. “No caso dos medicamentos já incorporados, a judicialização deveria ser incentivada por um ministro. Isso o fará ver onde há um obstáculo e entender o que é obscuro”, destaca. “Combater isso é dizer que não precisamos ter os problemas apontados. É um princípio arrogante”, conclui.
Fortalecer instituições e conscientizar pacientes
Existem, sim, casos em que o caminho judicial pode ser considerado inadequado – é quando se buscam tratamentos que ainda não foram aprovados ou sequer analisados pelas agências no Brasil. “Medicamentos sem registro sanitário exigem mais atenção, porque é uma judicialização que traz perigo para o sistema”, aponta Benevento.
Mesmo nessas situações, porém, não há uma saída simples. Embora haja demandas judiciais por remédios sem qualquer estudo sério, muitas vezes a avaliação já ocorreu em outros países com fiscalização considerada confiável.
“E temos ainda os casos em que há registro em vários outros países, mas o tratamento não chegou ao Brasil porque o fabricante não tem interesse em trazer, comumente porque as regras para definir preços não são atrativas”, complementa Benevento.
Para Gustavo San Martin, diretor-geral da AME/CDD, o ministro Marcelo Queiroga também desconsiderou as discussões jurídicas que ocorreram em torno do assunto no passado. “O Supremo já criou critérios para qualificar o processo de judicialização”, afirma. “O que sobra aqui é principalmente a judicialização de produtos já incorporados em outros países, que muitas vezes são a única opção existente para tratar uma doença, mas que não foram avaliados no Brasil”, reitera.
Esse cenário é relativamente comum entre pessoas com doenças raras. “Eu pergunto para o ministro: se um filho dele tivesse uma doença dessas, se ele, como pai e diante de todo o arcabouço legal e histórico do nosso país, se ele não judicializaria também”, questiona San Martin.
Na visão de San Martin, o problema é anterior à busca pela Justiça. Ele passa pela falta de critérios metodológicos na hora de avaliar as demandas pelo que já é oferecido lá fora. Por que um tratamento para uma doença é incorporado e o outro, não? A falta de padrão, claro, gera desconfiança.
Tiago Farina Matos também entende ser preciso avançar na credibilidade social das instituições que regulamentam o setor, para que eventuais recusas sejam compreendidas pela população. “Quando a Anvisa nega o registro de alguma coisa, não se costuma questionar: você fica feliz que ela analisou e impediu que algo sem eficácia chegasse ao público. Mas as pessoas não confiam da mesma forma na Conitec, que assessora o Ministério na incorporação de tratamentos, por exemplo”, compara o advogado. “O maior risco de um discurso como o do ministro é transformar a consequência como causa do problema. Aí nunca vamos resolvê-lo”, encerra.